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Ruas estreitas, declivosas, de traçado irregular; casas empoleiradas umas sobre as outras, como que a quererem fugir às agruras da montanha - a arquitectura dos povoados de xisto, da Serra do Açor exibe as marcas de uma prolongada solidão, de uma vida de profundas dificuldades. Mas, ao mesmo tempo, quer esteja no alto da serra, a meia encosta, ou no fundo de um valeiro, cada aldeia é um conjunto de grande dignidade, beleza arquitectónica e unidade estilística; é uma parte que se integra harmoniosamente no todo. Profunda contradição, esta - cada porta abre para um mundo agonizante, exibe feridas fundas vindas do passado, é um testemunho de tempos difíceis. Mas, a mesma porta, empurrada na direcção oposta, abre para o futuro, interroga nos olhos cada visitante. Os dias que estão para vir mergulham as suas raízes nos dias já idos. Conseguiremos nós, peneirar o passado no crivo do presente até lhe retirar o joio espúrio da pobreza e da miséria? E que destino dar a todo este grão, enfim limpo? Uma coisa é certa, cada geração come o pão que a outra antes amassou.
Dr. Paulo Ramalho, in Tempos Difíceis - Tradição e Mudança na Serra do Açor
"São muito pobres estas nossas aldeias sertanejas, onde a graça de Deus só chega por alturas da côngrua e a de César só por alturas da décima. Mas gozam de um bem que nenhuma riqueza compra: a de serem imunes à solidão. Apesar de viverem desterradas do mundo e fazerem parte de uma pátria de desterrados, dentro dos seus muros reina o convívio. A vida articula-se nelas de tal maneira que a lepra do ensimesmamento não as pode contaminar. A velha que espreita à janela, o homem que sai de enxada às costas e a criança que solta o gado da loja são pedras indispensáveis de um jogo de muitos, figuras essenciais do mesmo retábulo, que nem separadas ficam sózinhas."
Miguel Torga, in "Diário" VIII (Salgueiral, 23 de Dezembro de 1958)
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