Na serra todos os relógios pararam, mas o mecanismo das horas não se deteve. A espiral do tempo arrastou-nos até ao fim do milénio.
Olhemos para trás antes de começar uma nova era.
Do passado restam-nos apenas velhos objectos com as suas histórias cruzadas e algumas recordações numa gaveta qualquer. E no entanto, no recanto puro da memória, guardamos saudade a esses tempos que foram difíceis.
Alguém sabe que lembrança guardarão os nossos filhos destes dias desvairados que lhes damos a viver?
A nossa civilização chegou à sua última encruzilhada: agora, ou consumimos o que resta do planeta ou reciclamos os nossos hábitos e atitudes.
Olhemos de novo para trás, a colher os últimos ensinamentos, antes de nos aventurarmos para lá da curva da estrada.
O passado não é uma história de encantar. Houve miséria, por vezes fome; e aos filhos da Serra sempre coube, nas alturas da crise, o ingrato papel de espelho onde se reflectiam, ampliadas, as agruras e injustiças do Mundo.
Dr. Paulo Ramalho, in Tempos Difíceis - Tradição e Mudança na Serra do Açor
Mas a vida simples da gente serrana encerra uma lição de harmonia, sóbria dignidade e utilização comedida dos recursos, que pode ser o ponto de partida para uma reflexão sobre as características mais perversas da nossa própria Sociedade de Consumo.
Reparemos, por exemplo, no modo como todos os utensílios eram remendados, reaproveitados ou reutilizados em novos contextos; nada se desperdiçava ou deitava fora; não havia tanto lixo nem se acumulavam objectos supérfluos.
Cada utensílio era um bem raro, feito com o suor do rosto ou comprado à custa de grandes sacrifícios; seria por isso normal que durasse uma vida.
Os sarrões, as gamelas e os funis remendados, a louça quebrada e depois reparada com gatos - estes objectos, depois de passarem de mão em mão, falam-nos agora de um tempo em que poupar era tão normal quanto, hoje em dia, gastar e consumir indiscriminadamente.
Terras de pão que só dão silvas; levadas atulhadas de cascalho; muros derrubados; portas que dão para casas vazias; telhados que caem para dentro; varandas que apodrecem, debruçadas sobre ruas desertas; pinheiros onde antes havia mato para gado; fogos; eucaliptos depois dos fogos; ribeiras secas; erosão - cresceu um enorme deserto nos escombros da nossa memória colectiva e paira sobre ele a recordação de tempos que foram difíceis.
Mas a Serra é um segredo bem guardado pelas suas gentes. O seu coração ainda bate em todos estes objectos e fotografias que balançam em frente aos nossos olhos. Há neles uma lógica que se esconde e revela, um jogo contraditório de sombras e de luzes; há, já não miséria, mas beleza e harmonia à espera do novo século que se aproxima.
Saberemos nós construir os alicerces desses dias futuros sobre as raízes sãs dos dias passados? As próximas gerações comerão o pão que nós amassarmos.
Dr. Paulo Ramalho, in Tempos Difíceis - Tradição e Mudança na Serra do Açor
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